quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Narciso e o Espelho da Modernidade

A parábola de Narciso, vista como um dos mitos mais populares na antiga Grécia, e presença marcante na literatura ocidental, conta muito da alma humana nesses tempos pós-modernos de sofrimento e ostentação. A história se aproxima dos tempos atuais porque pode representar pessoas vivendo em uma contradição constante: percebem a si mesmas, mas nada sabem sobre suas próprias condições e contradições, suas necessidades, seus limites e, por isso, agem acéfalos, tentando se adequar em cada novo ambiente, com a noção de que o mundo existe para servi-los. Segundo o que conta o poeta latino, Públio Ovídio (43 aC – 17 dC), Narciso era um rapaz dotado de muita beleza, filho do deus Cefiso e da ninfa Liríope que, antes de seu nascimento, resolveram consultar o oráculo para saberem qual o destino do filho e a revelação foi que teria uma longa vida, desde que nunca visse o próprio rosto. E, assim, Narciso cresceu e se transformou em um belo jovem despertando amor, tanto em homens quanto em mulheres, mas muito orgulhoso, tinha sempre uma arrogância que ninguém conseguia quebrar. Até que um dia debruçou-se sobre um pequeno lago, viu sua imagem refletida e por ela se apaixonou, mas, sem saber, ali estava marcado o seu próprio fim. Da expressão narciso tem-se a origem da palavra grega narke, que quer dizer, entorpecido que é de onde vem a palavra portuguesa, narcótico. Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, visto que ele era emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que o circundavam. Na modernidade, o mito de Narciso representa o drama da individualidade, a não percepção da própria prepotência, mesquinharia, arrogância e a crença de que o mundo deve curvar-se a seus pés; afinal, as imperfeições só são percebidas nos outros. Falando das ruas de São Paulo, Caetano Veloso cantou Sampa, dizendo (...) Quando eu te encarei / Frente a frente / Não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi / de mau gosto o mau gosto / É que Narciso acha feio / o que não é espelho (...) Mas ele estava era lembrando que as pessoas enxergam a si mesmas em cada coisa que se deparam, interpretam o mundo a partir de suas noções de valores, sem se dar conta de outros referenciais; as falhas dos outros são, na verdade, as suas próprias falhas. Assim, a fé verdadeira é sempre aquela pregada pela religião do próprio Narciso, a ciência necessária e coerente é a que ele pratica; da mesma forma, a corrupção é sempre a do outro e o abuso de poder é sempre em ações do outro, nunca as dele mesmo.

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