quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A Casa Grande, a Senzala e o Fim da Escravidão

A compreensão da dinâmica das relações sociais brasileiras nos tempos atuais só será possível se remontar as origens históricas,  os seus quase quatro séculos de escravidão e os modos como se fizeram a libertação desses escravos. Nas condições de como tudo aconteceu não foi possível extinguir as amarras escravagistas nesses já passados 130 anos; a segregação continua porque a mentalidade permanece.
Pelo menos continua em uma parcela expressiva da população, aqueles que ainda pensam como se permanecessem os tempos da "casa grande e senzala"  - aqui parafraseando Gilberto Freyre. Não que todos os que tenham tal pensamento sejam descendentes dos "senhores de engenho" das "charqueadas" ou das "armações", mas porque aprenderam a pensar assim, calcados por um sistema massificador: instrumentos repassadores como escolas, igrejas, famílias, imprensa etc.
O afro-descendente é sim o mais atingido nessa relação, mas o sistema não se reproduziu tal qual a divisão anterior: alguns homens negros ascenderam socialmente e de certa forma foram excluídos dessa classificação, do mesmo modo que homens brancos foram incluídos. Como resultado tem-se uma parcela expressiva que é segregada das condições de uma vida digna, excluída do seus direitos básicos como cidadãos.
E essa realidade está expressa na posição do País como o que tem o maior número de empregadas domésticas em todo o mundo, seguido de longe pela Índia, segundo lugar, e pela Indonésia, terceiro. A necessidade de alguém para fazer os serviços da casa se caracteriza pelo pensamento de que alguns existem para servir e outros para serem servidos. Um pensamento de que os serviços da casa não devem ser feitos por pessoas superiores, mas relegados aos subalternos, aos inferiores e, para isso, precisam sempre ser inferiorizados. E, nesse quesito, algumas expressões - faladas corriqueiramente - são emblemáticas: "ponha-se no seu lugar!" ou, "vive conosco como alguém da família".
É esse pensamento que não aceita que todas as pessoas possam ter uma casa digna, que possam andar de avião, que possam frequentar um restaurante, que possam comprar uma roupa nova. É esse pensamento que faz discurso contra escravidão, mas odeia e faz odiar qualquer um que se posicione contrário ao sistema; é segregador e se for preciso faz a defesa na rua em uma luta tirânica.
A conclusão é que esse pouco mais de 100 anos não foi suficiente para aplacar o pensamento escravocrata, construído nesses quase quatro séculos. O tempo ainda não foi suficiente para que a "casa grande" percebesse que a "senzala" acabou.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O Pobre, o Estado e a Direita

O simples fato de se fazer um discursos, gritar as quatro ventos, contra os programas políticos que se identificam como de esquerda, não habilita alguém a se autodenominar de direita. Esses dois conceitos - direito e esquerda - são complexos e necessita-se de debates mais aprofundados para entender as suas interrelações e isso não se faz com pouca ou nenhuma leitura a respeito.
Certas pessoas se espoem em debates com afirmações indevidas, completamente desconectadas da coisa em si. Fazendo isso expõem a si próprias, mostram o quanto não sabem sobre aquilo que falam; brigam e defendem o que não entendem. Isso não é ser de direita, mas com isso também não é ser de esquerda; o que se pode dizer é que essas pessoas simplesmente não são.
Ora, direita ou esquerda são programas políticos e as pessoas, denominadas como tal, são aquelas que, ao conhecerem tais programas, se identificam com uma das posições. Os programas políticos definem a posição que o estado deve ter diante de temas prementes para a populacao; por exemplo: deve-se investir em educação (educação pública, financiamento estudantil, bolsas), deve-se investir em saúde (SUS, SAMU), deve-se investir em segurança etc; esses são programas da esquerda pois a chamada direita defende o estado mínimo e/ou a sua ausência total.
Mas a relação direita/esquerda é mais que isso. Para entender implica-se conhecimentos  de Economia de Política, de Ética, de História e de Marketing. É preciso conhecer as relações em uma dada sociedade: por que alguns são tão ricos e outros são tão pobres; qual a dinâmica que leva a tão poucos terem tanto e tantos terem tão pouco? Claro, aí implica ainda discussões de ordem cristã, de ordem ideológica, de dominação, de exploração e outros conceitos.
Fazendo certas defesas, mas sendo desconhecedoras dos meandros que envolvem o debate, as pessoas acabam se expondo já que fazem defesas de pontos que sabidamente é contra a sua própria existência. Como pode um funcionário público, um estudante bolsista, ou usuário do SUS (Sistema Único de Saúde) defender o estado mínimo. Não há lógica. São questões básicas, qualquer primeiranista de Economia, ou que um dia já leu um livro de Ciência Política, sabe que estado mínimo significa ausência do poder público em serviços essenciais.
Aqueles que têm muito dinheiro (e esse "muito dinheiro" são bilhões) defenderem posições contrárias ao welfare state, condição alcançada por países de economia estável, com bom IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e alto nível educacional. Portanto, se dizer de direita, fazer a defesa de um pensamento cujo o nexo é contrário à sua condição de existência só é possível ter uma explicação, o desconhecimento  do objeto de seu próprio discurso.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O Estado, o Exército e a Polícia

Quando se conceitua estado se ressalta a estrutura jurídica e política, autônoma, de um povo, e isso é correto, mas em geral nada se diz dos órgãos necessários para que esse exista. Quer seja o estado uma instituição fortemente totalitária, ou extremamente liberal, não poderá existir se não houver o seu braço armado - quer seja um exército, uma polícia, uma guarda nacional, ou seja lá o nome que se der.
Se a legitimidade do governante é de ordem divina, ou democrática, também não importa. Reis e imperadores da antiguidade se preocupavam com seus homens armados e treinados, tanto para manterem a ordem interna quanto para fazerem o enfrentamento contra possíveis invasores.
Por mais que Immanuel Kant lembre que há uma relação direta entre a condição humana e a existência da lei,  diz ele que "nada é mais belo que as estrelas no céu e a lei moral no coração dos homens", parece que a imposição de uma dada ordem continua sendo possível com a força de um braço armado. Essa força, nos tempos antigos, era uma única corporação - os mesmos homens que mantinham a ordem interna eram também os que iam para o front em guerra contra o inimigo.
Na modernidade com o reordenamento estatal, com o novo papel dessa instituição frente às novas relações sociais e o avanço da organização burocrática, essa força armada foi reorientado e sistematizada com novas roupagens, agora dividida em pelotões preocupados com a ordem urbana, fazendo cumprir a lei produzida pelo estado e a de defesa contra inimigos invasores: a polícia e o exército. Mais tarde esse exército foi dividido entre os responsáveis pela defesa terrestre, defesa marítima e defesa aérea; já a polícia se dividiu em civil, militar, federal, legislativo e uma série de outras forças mais.
A partir daí, as duas estruturas se consolidaram em suas especializações, cada uma com a sua forte carga legal, burocrática, hierárquica e técnica, tomaram rumos diferentes, de modo que o que uma faz a outra não tem a mesma habilidade. Isso porque a manutenção da ordem nas sociedades complexas não demandam necessariamente força bruta e sim, mais treinamentos intensos, específicos e um ordenamento da corporação voltado exclusivamente para os conflitos urbanos. Da mesma forma os treinamentos do exército são voltados exclusivamente para o combate ao inimigo, ao invasor estrangeiro, com estratégias e táticas de ataques e recuos, se utilizando estudos sobre o adversário em uma guerra de movimento. O resultado é que as corporações, em suas especialidades não vêm interesse nos trabalhos do outro: a polícia não tem treinamento e não quer fazer os trabalhos do exército, da mesma forma o exército não está preparado e se vê deslocado em ter de fazer os trabalhos da polícia.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Cidadania, Política e Educação

Viver um regime político, se considerar um revolucionário libertário, um socialista, ou um democrata, implica em algo mais que a política em si. Implica na capacidade de conhecimentos sobre áreas relevantes para o entendimento da vida humana. Se não houver esse entendimento, se na houver o conhecimento sobre o objeto em questão, toda e qualquer forma de ação, de ingerência na sociedade estará comprometida.
Quando o pensador italiano, Antônio Gramsci, afirmou que o socialismo necessita ser entendido - e aí se encontra, para ele, a necessidade de educação - e que a percepção da complexidade das relações sociais não acontece de uma forma natural, mas depois de esforços para entender os meandros, as particularidades. Acontece que há pontos convergentes e divergentes na busca das relações e isso dificulta o entendimento, o que leva as pessoas a se distanciarem das possibilidades de apreensão do objeto em si.
Em geral, têm-se a certeza de que a educação é o instrumento necessário para o avanço social, para a democracia, a cidadania - essas coisas, mas poucos se apercebem da importância de se fazer a pergunta: que educação é essa e como ela deve ser?Certamente que os saberes lecionados nas escolas sempre serão importantes e necessários para o indivíduo como um todo; a frase cristiana já lembrara: "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará".
Mas não se pode negar a complexidade das relações entre os humanos, esses seres da racionalidade com os seus medos, frustrações, vontades, culturas, princípios etc, e isso leva a tipos de personalidades muito diferentes. Aliás, as ciências que estudam as relações sociais, a política, a psiquê e a cultura humana se aceitam como "não exatas", como disciplinas complexas por excelência, onde um mais um não necessariamente será dois.
Isso não quer dizer que um homem cônscio politicamente, com responsabilidades sobre sua sociedade, terá que ser antropólogo, sociólogo, psicólogo ou politicólogo, mas também não deve ser um inteiro analfabeto nessas áreas. Ora, essas ciências mostram que cada povo tem sua cultura como algo natural, como parte de sua existência, que cada indivíduo é moldado na própria sociedade, que sabedoria faz sabedoria, que pobreza gera pobreza, que ódio gera ódio e que bondade gera bondade, mas que isso também não é só assim simplesmente: há ainda uma subjetividade implicante na totalidade. Além do que, mais que grandes conhecimentos científicos, cidadania implica em um acompanhamento sistemático dos fatos ocorrentes na sociedade, com suas decisões gernamentais, votações  no parlamento, decisões de ministros e desembargadores etc.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Canalhas e Imbecis

As várias sociedades, ao longo dos tempos, definiram e definem as pessoas como  os normais e os anormais, os confiáveis diante de uma ação e os não confiáveis, aqueles que possuem a capacidade de consciência frente às conjunturas e os incapacitados. Nos tempos atuais é comum que se simplifique em apenas os certos e os loucos, ou os sábios e os tolos, ou ainda os conhecedores e os ignorantes.
Já se quis excluir os "anormais" do convívio social alegando que não estariam aptos, tanto por sofrerem com isso quanto por fazerem os outros sofrerem e assim por diante; mas também já se fez uma série de discursos e práticas pela inclusão com argumentos de que a cura estaria no convívio. Um dado interessante disso é que ninguém se sente o anormal, ou louco, apesar de as gerações pós-anos-sessenta - mesmo não aceitando serem chamadas de ignorantes ou de imbecis - vêm com simpatia o trato de louco, de diferente, ou de anormal.
Assim também determinados grupos políticos, contestadores do status quo, e mesmo grupos dentro da academia, como negação ao sistema econômico e social, se apresentam como aqueles que renegam o que se entende como normalidade. Nesse caso, talvez, a análise seja um tanto diferente, pois todos se acham normais, só que alguns se acham mais normais que outros.
No entanto, o anormal não necessita ser necessariamente louco, mas alguém de posse de suas faculdades mentais, porém com entendimentos distorcidos em relação a maioria pactuada, como é o caso do canalha e do imbecil. Em ambos os casos, por algum motivo, os entendimento não coadunam com os ditos normais, ou ainda: não coadunam com aqueles que seguem o que se aceita como normas gerais.
Mas há uma diferença fundamental entre esses dois, o imbecil e o canalha. Enquanto o primeiro destoa porque não sabe o que está acontecendo, não conhece as linhas dos fatos e ao se aproximar de alguém com falas prontas, bem feitas se ilude -podendo agir contra si próprio - e, o segundo, mesmo sabendo dos fatos, entendendo a conjuntura que se apresenta, desvirtua os dados para satisfazer os seus interesses.
O canalha tem uma natureza perversa, carrega dentro de si uma vontade de maldade e contraria os interesses da maioria do grupo em benefício próprio, enquanto o imbecil tem ou não tem maldade; apesar de que o que lhe faz imbecil não é exatamente a maldade, mas a sua ignorância. Acontece que o imbecil não sabe que é imbecil e quando souber, se souber, deixará de ser imbecil.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A Filosofia, as Ciências e a Existência

Quando os acadêmicos questionam, qual a diferença entre Filosofia e ciência, fico a refletir. Existe? Sem duvida, essa é uma daquelas questões complexas que pairam sobre a tradição dos saberes em todos os tempos. Para responder é preciso remontar a história do conhecimento humano, principalmente aos tempos da Grécia antiga, quando era comum que se chamassem todos os saberes, dominados até então, como Filosofia.
De certa forma isso faz sentido até os dias de hoje. Primeiro porque quando se fala em áreas como Matemática, História ou Direito, por exemplo, está se falando de uma disciplina em que alguém estuda somente os conteúdos ligados e passa a usá-la como profissão. Isso não acontecia nos primórdios greco-romanos, pelo contrário, as pessoas estudavam uma dada área por vontade, gosto, interesse e se quisessem estudar mais outra e mais outra, parcial ou integralmente, estudava. Nem de perto se pensava que esses estudos seriam o seu ganha pão.
A busca pelo conhecimento era por um "querer conhecer" em si, por um "amor ao saber". Por isso, a etimologia da palavra era adequada; estava retratada a natureza humana que desperta ante a complexidade do mundo que o cerca. A modernidade enquadrou os diversos saberes, delimitando áreas, estabelecendo objetos de investigação e seus métodos; e mais: as burocracias acadêmicas enquadraram seus mestres em biólogos, juristas, matemáticos, sociólogos etc., profissionais, agora dependentes de seus conhecimentos para sobreviver em um sistema que o consumo dita a regras de viver e em um fetiche do dinheiro, o que dificulta ainda mais o entendimento a respeito.
O que restou à Filosofia? Perdeu a razão de existir? Ou, a filosofia é uma totalidade perdida? Ora, os saberes foram delimitados pelo pensamento cartesiano da modernidade, mas sobreviveu e continua presente nas academias e ostenta nomes indispensáveis para entender a sobrevivência da humanidade com toda a complexidade de suas relações como Rousseau, Kant, Hegel, Heidegger, Derrida, entre tantos outros.
Acontece que as delimitações aconteceram, mas ficaram os hiatos, os espaços entre as disciplinas que nem uma nem outra se acercaram e nesse vão cabe a filosofia dos tempos atuais investigar e dar os retornos que se esperam. A Filosofia é sim uma ciência, mas sem a pretenção de se fechar em um saber estanque. Mais que um saber delimitado é uma resposta que os humanos dão a si próprios na angústia por se perceberem como consciências de suas próprias existências.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Entre o Operário e o Escravo

Já se disse que a história do mundo nada mais tem sido que a constante luta entre ricos e pobres, dominados e dominadores, explorados e exploradores; se nos tempos atuais se fala em capital e trabalho, em empregados e empregadores, em outras épocas falava-se em nobres e servos, em escravos e senhores. Pensar a escravidão e relaciona-la ao mundo do trabalho, por mais que se falem e escrevam pelas esquinas, exige-se muita investigação histórica, econômica, política e sociológica devido à sua complexidade.
Na modernidade, o conceito de escravo é pensado como o de uma pessoa, destituída de sua dignidade humana (comprada e vendida, ou trocada), posta para trabalhos forçados e recebendo apenas as condições mínimas de existência. A palavra Sklave (Alemão), esclave (Francês), esclavo (Espanhol) e, no Português, escravo, remonta o final da Idade Antiga e primeira metade da Idade Media, quando o Império Bizantino passou a escravizar os eslavos, seguido pelos monarcas germanos.
Os eslavos também eram arianos (povos indo-europeus) como a maior parte dos europeus, mas em geral suas tribos eram presas e vendidas para trabalhos nas plantações e minas, principalmente no leste europeu. Hoje, de origem eslava são os russos europeus, uma parte dos poloneses, os ucranianos, sérvios, croatas etc
Outros conceitos se associam como o de cativo (do Latim, captivum), aquele que é capturado, antigamente usado para presos de guerra - usados para o trabalho forçado, e servo - uma espécie de escravo em que o senhor sente-se com uma série de obrigações religiosas e morais sobre o indivíduo. Ou operário, aquele que opera as máquinas da indústria em um sistema de produção; nesse último, há ainda uma história de lutas de dois séculos por melhores condições de trabalho que vão desde a inexistência total de amparo legal até um série de conquistas conseguidas das lutas.
No mundo do trabalho dos tempos atuais, relacionar escravidão com o sistema de trabalhadores empregados (flexibilizando - uma palavra perigosa porque significa o fraco sedento para o forte) é, acima de tudo, dizer que se está voltando para os tempos da antiguidade. Ora, se o que se tem de avanços na modernidade é uma estrutura de estado com liberdade, igualdade, mas também com fraternidade e equidade, qualquer flexibilização é retorno e o retorno é escravidão.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Da Presunção de Inocência

Na Idade Antiga, dentro de uma complexa divisão social, acusavam-se uns aos outros por realizarem ações contrárias ao que determinavam os valores das sociedades em questão. Certamente que as classes mais favorecidas eram também privilegiadas nesse sentido, nenhum escravo se aventuraria a fazer qualquer denúncia contra um homem livre ou mais próximo ao poder.
As pessoas da Idade Média passaram por algo parecido, apesar de situações um tanto diferente. Um servo, por exemplo, não apresentaria qualquer denúncias contra seu soberano, contra a nobreza ou contra o clero. Até as revoluções liberais dos séculos 18 e 19, ninguém ousaria a tecer denúncias isoladas sobre os atos falhos e desmandos praticados por algum membro de posições sociais superiores.
Ora, um dos valores primeiros no mundo da justiça é a Presunção de Inocência. Valor que esteve presente já em todos os momentos da humanidade, mas que as relações de poder complexas das épocas geram as prepotências dos mais favorecidos de modo que as acusações ocorriam, mas sempre entre indivíduos iguais ou dos superiores sobre os inferiores.
As lutas liberais dos séculos 18 e 19 não só derrubaram os monarcas absolutos, mas também montaram uma ossatura de sociedade democrática: liberdades de expressão, dignidade da pessoa humana, fraternidade. Tudo isso pode ser resumido na Presunção de Inocência, um conceito que entrou para o mundo jurídico e de lá para o acadêmico e dai por diante passou a ser um marco nas sociedades que se pretendam democráticas e mesmo dentro de princípios cristãos.
A coisa depois de introjetada pela mente parece óbvia e assim é a ideia de que ninguém pode acusar o outro se não tiver provas; em outras palavras: todos são inocentes até que se provem contrário. E aí entra mais um conceito, a prova. Discursos não podem ser aceitos como provas - as pessoas têm as suas subjetividades, seus rancores e medos. Provas não se produzem, ou existem materialmente ou não existem.
Porque se alguém tem a intenção de produzir provas contra alguém está, na verdade, acabando com esse valor que fundamenta o mundo jurídico, a Presunção de Inocencia. Sim, pois, se eu tenho a intenção de produzir provas só o quero para poder prender o meu acusado; ora, nesse caso, o julgamento já o fiz e o fiz sem as tais provas. E, aí, entra um outro conceito: o motivo; o que leva alguém a incriminar outro sem provas?

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Sociedades e Estados

Muito se discute sobre o papel do estado em uma sociedade (estado mínimo, estado máximo e eliminação total) e aí desfilam as diversas teorias desde anarquistas, e socialistas até liberais. O problema é que unificam as discussões como se todas as sociedades fossem exatamente iguais e, portanto, se devessem pensar essa instituição de forma exatamente igual para todos os povos.
Essa questão liga-se diretamente à solução encontrada por John Locke, frente ao debate entre Thomás Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. A questão dada era: o homem é bom por natureza e o sistema é que o oprime ou, ao contrário, o homem é mau, mas o sistema é que o corrige? Ora, nem um e nem outro; o sistema, o estado, o contrato, será bom ou será ruim dependendo daquilo que o povo o fizer.
Sim, os homens que mantém o estado funcionando com suas leis, decretos, portarias e toda a sorte de articulações políticas não são pessoas apartadas da sociedade, mas filhos e filhas das famílias nascidas da mesma população. Burocratas, concursados, indicados ou eleitos, todos trazem das suas crenças herdadas de pais, tios, avós, professores e comunidade em geral, o modo como a coisa pública deve ser tratada; aliás, vem daí a noção que cada um tem de público e de privado, a de noção ética na execução das atividades e assim por diante.
Não se pode esperar laranja de bananeira, as pessoas são resultados de suas origens.
Um povo educado, ético, respeitoso terá homens e mulheres que ocupam cargos a frente ao estado com educação, com ética e respeito; igualmente é o seu inverso: um povo ganancioso, sem respeito ao outro, que se posiciona sempre como superior tentando levar vantagem em tudo, terá governantes e burocratas do mesmo naipe. O estado é sim um conjunto de leis agregadas sob a égide de uma constituição, mas tudo articulado funciona como uma máquina operada por pessoas de carne e osso com costumes, frustrações, princípios, saberes e falhas.
O estado bom, com leis e decisões políticas que vão ao encontro das necessidades da população, é comandado por pessoas, filhos e filhas da mesma sociedade, assim como o estado ruim, aquele que vai de encontro aos anseios das pessoas. Há um erro de análise estabelecer o nexo dos desmandos, de acertos e desacertos como originários das políticas do estado. A ordem é essa: a origem é a ação da sociedade frente ao estado e o fim é que são as ações do estado frente à sociedade.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Estado, Poder e Tecnologia

Para entender as civilizações, nessas duas últimas décadas, precisa se levar em conta relações muito próximas entre os setores da economia capitalista, os chamados meios de comunicação e as corporações atuantes junto ao estado. Mas para isso é preciso remontar as primeiras discussões sobre economia, política e sociedade feitas ao longo do século 19, no calor da efervescente revolução industrial.
Nesses tempos, o pensador alemão, Karl Marx, definira estado como sendo um instrumento da nova classe em ascensão, um comitê de defesa dos interesses da burguesia, instituição a ser suplantada ao cabo da revolução social que seria promovida pelos trabalhadores industriais. Nesse caso, através do estado, os donos do capital jogariam pesado para que as sociedades, ditas democráticas, escolhessem deputados, senadores e governadores que se comprometessem com os seus projetos de aumento dos ganhos. Posteriormente, alguns pensadores da Teoria Crítica, já no século 20, repensaram o caso e afirmaram que das lutas operárias muitos sindicatos de trabalhadores elegeram representantes para os parlamentos e que esses faziam o contraponto com os governos burgueses ao aprovarem leis em defesa da classe laboral e que - assim - punham um fim à crueldade do sistema capitalista de produção do século anterior.
Acontece que nas últimas décadas, a medida que os trabalhadores se organizavam politicamente e elegiam parlamentares e governantes com programas balizados em preocupações sociais, os meios de comunicação de massa se fortaleceram e dominaram o cenário político e cultural nas sociedades com educação mais fragilizada. O poder econômico, que outrora se utilizara da força bruta do estado para impor suas vontades, passara agora a fazer uso das redes de televisão, dos jornais e dos rádios para disseminar suas orientações econômicas e políticas.
Mas a história segue e o sistema econômico sente o peso da idade ao perceber que os avanços tecnológicos (a internet) que podem impulsionar o mercado ditando leis de seus interesses, pode também dar autonomia às pessoas para cada vez menos se deixem prender às orientações de um mesmo veículo de comunicação. Chegou a era da interatividade e as pessoas cada vez mais mudam os veículos de comunicação de seus interesses, pulam de um blog para o outro, de um portal para outro; além do que, grupos organizados - desconectados de um sistema central - escrevem e, bem ou mal, já interagem e escapam de uma centralização.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Entre Monumentos e Castelos

Muito comum que pessoas da América Latina, África e Ásia visitem países europeus e fiquem extasiadas com os inúmeros palácios e castelos com idades milenares, além de torres, obeliscos e monumentos às grandes personagens que fizeram a história desses povos. Nos museus, ficam encantados com as obras de artistas renomados como Renoir, Michelângelo, Van Gogh, entre outros; visitam a casa onde morou Shakespeare, Kant, Nietzche etc.
Quando voltam para seus povos, contam maravilhados o que viram e expõem as fotos feitas na viagem, também admiradas pelos que não saíram de casa; alguns chegam a afirmar que se identificam com os países visitados e o modo de vida daquelas sociedades. No entanto, dificilmente tais pessoas percebem que esses povos fizeram a tarefa de casa: diminuíram as diferenças sociais - estabelecendo impostos para as grandes fortunas - impuseram salários justos para todos acabando assim com as grandes diferenças salariais e investiram em educação. Ora, nesses lugares a educação, a saúde, a segurança têm boa qualidade e não é por isso que as pessoas mais abastadas usufruem desses serviço, mas - ao contrário - esses serviços são satisfatórios porque todos os usam e com responsabilidade.
Quando o escritor francês, Marcel Proust, escreveu que: "A verdadeira viagem da descoberta consiste não em buscar novas paisagens, mas em ter olhares novos", parecia estar a nos dizer algo a esse respeito. Parece que o autor de Em Busca do Tempo Perdido estava a nos dizer que mais que as aparências das paisagens é preciso entender e buscar para si o exemplo do que o outro fizera de melhor.
Esses mesmo viajantes pelo "velho mundo", quando retornam às suas comunidades, não conseguem perceber a importância da distribuição de renda, da reforma agrária, da taxação das grandes fortunas e continuam a deixar em segundo plano a educação pública, a saúde pública e a segurança pública. Em suas comunidades, mesmo ainda excitados pelo que viram em suas andanças, fazem da própria viajem um motivo a mais para se definirem como superiores aos seus e tudo continua como dantes.
O que podemos entender? Para além dos castelos e monumentos, os povos têm a mostrar a sua maneira de ver e de fazer política e que essa não é uma torcida organizada em que uns são a favor e outros são contra. É também Marcel Proust que no diz: "Deixemos que a beleza feminina fique para os homens sem imaginação!"

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Ditadura e Judiciário

Já se repetiram muitas vezes a frase do jurista e senador brasileiro no século 19, Rui Barbosa, de que a pior das ditaduras é a ditadura do judiciário, pois contra ela não há a quem se possa recorrer. Na verdade, contra qualquer ditadura não há a quem se possa recorrer a não ser através de uma organização popular, de luta armada e guerra civil ou da simples desobediência civil com votos contrários e por aí vai.
As ditaduras veladas ou escancaradas são todas injustas, cruéis e têm como base a prepotência de alguns que acreditam poderem ou deverem se sobrepor aos demais membros da sociedade. E toda e qualquer ditadura acontece quando não está claro para os seus agentes o sentido da vida, quando esses se acham ungidos com a verdade e, por isso, acreditam que precisam impor suas crenças e ideologias ao restante da população.
Nesse caso, a expressão acima tem um fundo de verdade ao se perceber o conluio que se forma quando juízes, apoiados pelo ministério público, se fecham em copa, defendem interesses corporativos e até político-partidário. É o pior que pode acontecer em uma sociedade que se pretenda democrática tendo em vista que, com isso, se perde o fiel da balança, a isenção necessária para a garantia do direito.
Aliás, esse fiel da balança representa todo o mundo jurídico, o império da lei e da ordem e a sua quebra é também a quebra do direito, a destruição da ordem; não havendo isenção é impossível existir garantias individuais. A simples discussão de se os juízes devem ou não serem isentos é o mesmo que discutir se o direito deve ou não existir. Não tem nexo.
E mais: o simples fato de discutir esse tema e pensar na possibilidade de os magistrados se unirem na defesa de interesses partidários e/ou defenderem os próprios interesses corporativos é denunciar as condições políticas e econômicas de uma sociedade, bem como a educação e a formação universitária. Porque nos cursos de graduação decoram-se as leis parágrafo por parágrafo, as suas relações e hierarquias entre elas, mas pouco ou nada sabem sobre o mundo aos quais elas de fato serão aplicadas.
O que se pode chamar de ditadura do judiciário é, acima de tudo, uma fragilidade educacional, um desajuste e entendimento da real função das instituições; se é que tudo isso não é a mesma coisa. Algumas ditaduras, oriundas do executivo, podem durar até quarenta ou cinquenta anos, mas não me parece que a prepotência de juízes possa durar tanto tempo sem que uma mobilização social retirem-nos do centro do poder e construam encima uma nova ordem.